Brevíssimas considerações doutrinárias e jurisprudenciais acerca da prisão civil na execução.
Na senda gizada pela Convenção Internacional sobre Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, “ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”. Em igual sentido, arvora-se o inciso LXVII do artigo 5° da Constituição Federal de 88: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia”[1]. Desta feita, resvalando pela seara processual, vislumbra-se que, no que é ínsito ao cumprimento de sentença (e até mesmo na efetivação da tutela provisória [2]), a doutrina vem se digladiando acerca da possibilidade de utilização da prisão civil como meio de coerção psicológica. Entrementes, antes de adentrar no mérito, impende tecer breves considerações acerca da fase de execução.
Após o término da fase de conhecimento (demarcado, de compasso com o parágrafo primeiro do artigo 203 do Código de Processo Civil de 2015, com a prolação da sentença), enceta-se a fase de execução, caracterizada pelo cumprimento da decisão judicial (deparamo-nos, pois, com a concretização do direito reconhecido no título executivo [judicial ou extrajudicial]). Pois bem, é nesta toada que cumpre asseverar, com esteio na melhor doutrina, a existência dos meios executivos, é dizer, meios que se prestam a constranger o devedor ao adimplemento obrigacional. Neste diapasão, os meios executivos ramificam-se em “execução por sub-rogação” (direta) e “execução por coerção” (indireta)[3]. Destarte, conforme aduz Daniel Neves (2020, p. 1044), “Na execução por sub-rogação, o Estado vence a resistência do executado substituindo sua vontade, com a consequente satisfação do direito do exequente. […]. Exemplos classicamente lembrados são a penhora/expropriação; depósito/ entrega da coisa…”. Consecutivamente, aventa: “Na execução indireta, o Estado-juiz não substitui a vontade do executado; pelo contrário, atua de forma a convencê-lo a cumprir sua obrigação, com o que será satisfeito o direito do exequente. O juiz atuará de forma a pressionar psicologicamente o executado…” (NEVES, 2020, p. 1045). De seu turno, a execução indireta subdivide-se em duas, a saber, uma que ameaça agravar a situação da parte em caso de não cumprimento da obrigação, e outra que proporciona à parte uma melhora em sua situação fática na hipótese de adimplemento obrigacional.
À luz do que foi supramencionado, não se pode olvidar das outrora citadas digladiações em sede doutrinária. Consoante sintetiza Neves (2020, p.1184), de maneira magistral,
“Parcela da doutrina defende que na interpretação do art. 5°, LXVII, da CF- que excepciona a prisão civil por dívida- não há vedação para a prisão civil como meio de coerção psicológica, considerando-se que, ao qualificar a espécie de prisão que estaria proibida, a Constituição Federal não vedou expressamente outras espécies de prisão civil. Para fundamentar esse entendimento, o termo ‘dívida’ utilizado no dispositivo constitucional deve ser entendido como ‘obrigação de pagar quantia certa’, de forma que a prisão civil poderia ser utilizada como forma de pressão psicológica no adimplemento de outras espécies de obrigação, como a de fazer e não fazer”.
Compartilhando idêntico entendimento, Marinoni (2019, p.164), com o brilhantismo que lhe é peculiar, esposa: “O objetivo da norma constitucional que proíbe a prisão por dívida é vedar a prisão civil por descumprimento de obrigação que dependa, para seu adimplemento, da disposição de dinheiro”. Sob este crivo, continua:
“A interpretação do art. 5°, LXVII, da Constituição Federal, deve ser alçada a um nível que considere os direitos fundamentais. Se é necessário vedar a prisão do devedor que não possui patrimônio- e assim considerar um direito fundamental-, é absolutamente indispensável permitir o seu uso para a efetividade da tutela de outros direitos fundamentais”. (MARINONI, 2019, p. 165)
Deveras, o juiz, na praxe forense, pode se defrontar com a colisão de princípios e regras. Assim, fazendo uma colisão fundamentada e racional entre os valores conflitantes, deve estabelecer qual direito deve prevalecer no caso sub judice (afinal, o magistrado não pode ser um servidor passivo do legislador e tampouco um burocrata, mas um servidor que assume uma responsabilidade ética frente aos jurisdicionados, com vistas a fazer valer o macro princípio da dignidade da pessoa humana, que coligiu tamanha importância com o advento da promulgação da Constituição Cidadã). É em razão disso que, com fulcro no artigo 139, IV, do NCPC/2015, o juiz é revestido do poder de “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”. Neste diapasão, o parágrafo primeiro do artigo 536 do Codex fixa que os meios executivos são elencados em rol exemplificativo, numerus apertus, comportando, pois, ampliação pelo magistrado.
Ao revés,
“A tese é rejeitada por parcela considerável da doutrina, que interpreta o termo ‘dívida’ constante do texto constitucional como inadimplemento de qualquer espécie de obrigação, inclusive de fazer e de não fazer, tese corroborada pelo recente posicionamento do Supremo Tribunal Federal de que não cabe prisão civil do depositário infiel” (NEVES, 2020, p. 1184).
Com efeito, a praxe forense vem inadmitindo prisão civil enquanto forma de execução indireta, o que, como consectário, induz alguns juízes a determinar prisão em flagrante do devedor pelo crime de desobediência[4]. Inobstante, insta consignar o fato de que o Superior Tribunal de Justiça entende pelo não cabimento de decretação dessa modalidade de prisão pelo juízo cível, devendo oficiar o Ministério Público para tomada de providências idôneas. Nesse sentido, imperioso trazer a lume um trecho do informativo 517 do STJ:
“Não é possível que o magistrado, ao conceder tutela antecipada no âmbito de processo cível cujo objeto não consista em obrigação de natureza alimentícia, efetue ameaça de decretação de prisão para o caso de eventual descumprimento dessa ordem judicial, sob a justificativa de que, nesse caso, configurar-se-ia crime de desobediência (art. 330 do CP). Isso porque não se admite a decretação ou a ameaça de decretação de prisão nos autos de processo civil como forma de coagir a parte ao cumprimento de obrigação, ressalvada a obrigação de natureza alimentícia. (RHC 35.253-RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 5/3/2013).
De outra banda, novamente sob a égide das preleções de Marinoni (2019, p. 167 e ss.):
“Não admitir a prisão como forma de coerção indireta é aceitar que, em determinadas situações, o processo não terá efetividade, e, assim, que nestas hipóteses, o ordenamento jurídico estará apenas proclamando os direitos. […]. A forma de interpretação que não admite o uso da prisão como meio coercitivo constitui um método hermenêutico clássico, não suficiente quando comparado aos métodos hermenêuticos modernos, absolutamente necessários quando o que se tem a interpretar, diante das características da sociedade contemporânea e da importância que nela assumem os direitos fundamentais, é um contexto de grande riqueza e muito complexidade”.
Ora, em face de todo o exposto, vê-se que, devido à necessidade de observância da segurança jurídica, imprescindível em um Estado Democrático de Direito, a doutrina e a jurisprudência devem se tornar uníssonas no que é atinente à possibilidade de prisão civil como meio de coerção indireto, sob pena de deixar os jurisdicionados à mercê de aleatoriedades.
[1] Aqui, optei por suprimir a expressão “e do depositário infiel”, porquanto não apenas Pacto em comento, como também o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos assim dispõe: “Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”. Apenas a título elucidativo, calha asseverar que o depósito é uma espécie de contrato com previsão entre os artigos 627 e 652 do Código Civil, e consiste, substancialmente, na entrega, pelo depositante, de coisa móvel ao depositário para que este o guarde até que aquele o reclame.
[2] MARINONI, Luiz Guilherme. “Tutela de Urgência e Tutela da Evidência: Soluções processuais diante do tempo da Justiça”. 3° ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 164 e ss.
[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. “Manual de Direito Processual Civil”. 12 ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1044 e ss.
[4] Código Penal, art. 330: “Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena- detenção, de quinze dias a seis meses, e multa”.
Referências
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela de Urgência e Tutela da Evidência: Soluções processuais diante do tempo da Justiça. 3° ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 12 ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
STRECK, Lenio Luiz et al. Os modelos de juiz: Ensaios de Direito e Literatura. 1° ed. Recife: Atlas, 2015.
TARTUCE, Flávio. Resumo. Informativo 517 do STJ. Jusbrasil, São Paulo, 2012. Disponível em: <https://tecnoblog.net/247956/referencia-site-abnt-artigos/>. Acesso em: 20 de dez. de 2020.